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Indulto Natalino 2025: entre a humanização do sistema prisional e o combate às facções criminosas


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24/12/2025 05h38

Indulto Natalino 2025: entre a humanização do sistema prisional e o combate às facções criminosas

Amanda de Sordi


Decreto assinado por Lula amplia benefícios para mulheres e estudantes, mas exclui líderes de organizações criminosas e condenados pelos atos de 8 de janeiro

Por Arthur Richardisson*

O Presidente da República editou o Decreto nº 12.790/2025, que concede indulto natalino e comutação de penas, com hipóteses específicas e vedações expressas (incluindo, entre outras, pessoas submetidas ao Regime Disciplinar Diferenciado – RDD e condenações por crimes contra o Estado Democrático de Direito).

A medida se insere em um contexto mais amplo: o enfrentamento ao estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347, julgada em outubro de 2023.

 Longe de ser um ato isolado de clemência presidencial, o indulto integra o conjunto de políticas do Plano Pena Justa, o ambicioso plano nacional homologado pelo STF em dezembro de 2024 e lançado em fevereiro de 2025 para avançar em relação ao sistema prisional brasileiro.

Diferentemente do que muitos imaginam, o indulto natalino não é elaborado apenas no Palácio do Planalto. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão consultivo e deliberativo criado pela Lei de Execução Penal, desempenha papel estratégico na construção da proposta.

No âmbito do CNPCP, foi instituído um Grupo de Trabalho para subsidiar tecnicamente a proposta de indulto e comutação, por ato formal de 2025, com produção de nota técnica e consolidação de contribuições.

O grupo de trabalho reuniu conselheiros, técnicos especializados e representantes de diferentes setores da execução penal.

O grupo analisou dados estatísticos do sistema prisional, examinou a aplicação de decretos anteriores e identificou pontos de aprimoramento.

Como etapa fundamental, foi realizada audiência pública para colher contribuições da sociedade civil, entidades de defesa de direitos humanos, organizações de vítimas, órgãos de segurança pública e especialistas em política criminal.

Essa participação social qualificou a proposta, permitindo que o texto final refletisse um equilíbrio entre demandas humanitárias e preocupações legítimas com a segurança pública.

Além de elaborar a proposta, o CNPCP terá função expressa de fiscalizar o cumprimento do decreto durante inspeções em estabelecimentos penais. Trata-se de um mecanismo de controle institucional que garante que o decreto não seja letra morta. O indulto, portanto, não é improviso presidencial nem decisão unilateral: é política criminal construída com evidências empíricas, participação social ampla e parâmetros técnicos verificáveis

 A manifestação formal do CNPCP, encaminhada à Presidência da República, consolida esse trabalho e fundamenta tecnicamente a decisão presidencial.

O ponto mais polêmico — e estratégico — do decreto é a exclusão expressa de líderes e integrantes relevantes de facções criminosas. Em debate público no Senado (CPI do Crime Organizado), registrou-se a afirmação de que facções já teriam capilaridade nacional e que o crime organizado movimentaria quase R$ 300 bilhões por ano, como estimativa atribuída a especialista ouvido. Trata-se, portanto, de declaração em ambiente de controle político e de estimativa, não de série estatística oficial.  

Dados do Mapa da Segurança Pública de 2025, divulgado pelo Governo Federal em junho deste ano, revelam que o Brasil registrou 35.365 homicídios dolosos em 2024, representando queda de 6,33% em relação aos 37.754 de 2023 e mantendo trajetória de redução contínua desde 2020. Apesar da queda, o número permanece alarmante — uma média de 97 assassinatos por dia.

O Atlas da Violência 2025, divulgado em maio pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registrou 45.747 homicídios em 2023, a menor taxa em 11 anos: 21,2 casos por 100 mil habitantes, representando queda de 2,3% em relação a 2022.

Muitas dessas mortes estão relacionadas a disputas territoriais entre facções que controlam o tráfico de drogas, armas e lavagem de dinheiro.

Dentro das prisões, o cenário também é estatisticamente grave. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 registra 3.091 óbitos no sistema prisional em 2023, incluindo 703 óbitos criminais, com taxa de 83,1 por 100 mil pessoas privadas de liberdade (2023). No mesmo período, a taxa nacional de homicídio doloso foi de 17,83 por 100 mil (base do Mapa da Segurança Pública 2025), de modo que, comparando indicadores e bases distintas, a taxa de óbito criminal no cárcere é da ordem de 4,7 vezes a taxa nacional de homicídio doloso. (Fontes: Anuário 2025, Tabela de óbitos no sistema prisional; Mapa 2025, série nacional de homicídio doloso.)

O Relatório do 1º semestre de 2025 (SISDEPEN) indica que, em 30/06/2025, havia 701.637 pessoas na população prisional considerada nos quadros de celas físicas, e um déficit de 202.296 vagas no mesmo recorte.

Para evitar comparação indevida com outras publicações (que podem agregar custódia policial, monitoração eletrônica e/ou recortes distintos), é essencial explicitar sempre o universo do indicador utilizado.

As facções estabeleceram códigos próprios, tribunais informais, sistemas de arrecadação e redes de proteção que, paradoxalmente, preenchem vazios deixados pelo Estado. Esse domínio não é acidental: é resultado de décadas de superlotação crônica, precariedade das condições de custódia e ausência de políticas consistentes de reintegração que transformaram as prisões brasileiras em território fértil para o recrutamento e o fortalecimento de estruturas criminosas.

A exclusão de pessoas submetidas ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) segue a mesma lógica. Criado em 2003 após a megarebelião coordenada pelo PCC, o RDD isola lideranças criminosas que, mesmo presas, continuam comandando operações. Incluí-las no indulto seria contraditório e sinalizaria fraqueza estatal no enfrentamento ao crime organizado.

Além das facções, o decreto mantém firmeza com condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. A tentativa de golpe que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes em Brasília não terá clemência. É um recado inequívoco: não há espaço para indulgência com quem atenta contra a democracia. Essa exclusão equipara, simbolicamente, o ataque à democracia aos crimes mais graves previstos no ordenamento jurídico, reafirmando que a defesa do Estado Democrático de Direito não é negociável.

Se o decreto é rigoroso com o crime organizado e ataques à democracia, é também mais generoso com grupos vulneráveis e com quem demonstra esforço de reintegração social. O decreto de 2025 reduziu o tempo mínimo de cumprimento de pena exigido para quem estuda durante a execução penal. Estudos nacionais e internacionais demonstram que a educação é um dos fatores mais eficazes na redução da reincidência criminal.

Ao incentivar o estudo, o decreto reconhece que a educação não é apenas um direito, mas uma estratégia inteligente de política criminal. A idade do filho ou filha considerada para redução de lapsos temporais foi ampliada de 14 para 16 anos. Na prática, isso estende a proteção também às famílias com adolescentes de 15 e 16 anos, reconhecendo que a responsabilidade parental não se encerra no início da adolescência.

A adolescência é período crítico em que a ausência de referências familiares pode resultar em evasão escolar e até aliciamento pelo crime organizado.

O indulto especial para mulheres presas foi significativamente ampliado. A idade de filhos e netos considerados para mães e avós subiu de 12 para 16 anos, e o lapso mínimo de pena cumprida exigido foi reduzido de um sexto para um oitavo.

Trata-se de mudança com impacto direto para mulheres responsáveis por crianças e adolescentes. Dados do Levantamento de Informações Penitenciárias do primeiro semestre de 2025 indicam que o Brasil possui população carcerária de 941.752 pessoas, sendo 53.880 mulheres (5,9% do total).

No recorte de gênero, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 aponta 53.880 mulheres privadas de liberdade em 2024 (no consolidado por tipo de estabelecimento e sexo).

Em termos comparados, levantamentos internacionais como o World Female Imprisonment List colocam o Brasil entre as maiores populações carcerárias femininas do mundo (em geral, atrás de EUA e China), com ressalvas metodológicas sobre completude e comparabilidade internacional.

Segundo publicação governamental de referência sobre mulheres e privação de liberdade, em 2024 predominam, entre mulheres privadas de liberdade, crimes associados a drogas, seguidos por crimes contra o patrimônio e contra a pessoa. No recorte operacional do SISDEPEN (30/06/2025) para celas físicas, constam 12.622 mulheres presas por crimes da Lei de Drogas (tráfico/associação/tráfico internacional) entre os registros do período. Recomenda-se manter o “perfil típico” apenas como síntese analítica, distinguindo-o de “estatística oficial”.

Quando uma mulher é presa, há impacto direto sobre a rede de cuidados e sobre vínculos familiares. A literatura e relatórios públicos descrevem que o cuidado frequentemente é redistribuído no âmbito familiar, com sobrecarga de figuras cuidadoras e efeitos sociais relevantes; por isso, ao tratar do tema, recomenda-se evitar percentuais não auditáveis e ancorar a argumentação em indicadores verificáveis (quantitativos) e em relatos institucionais (qualitativos).

O decreto reconhece que o encarceramento feminino atinge gerações inteiras. Esse reconhecimento não é apenas humanitário: é pragmático. Manter vínculos familiares é estratégia de prevenção criminal, pois adolescentes sem referências familiares estão mais vulneráveis ao aliciamento pelo crime organizado, perpetuando ciclos de violência e exclusão.

O indulto de 2025 não pode ser compreendido isoladamente. Ele se insere no contexto do reconhecimento, pelo STF, de que o sistema prisional brasileiro vive um estado de coisas inconstitucional — situação de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que exige ação coordenada de todos os Poderes.

No controle concentrado, na ADPF 347, em julgado em 2023, o STF determinou que a União e o Conselho Nacional de Justiça apresentassem um plano nacional para superar a crise. O resultado foi o Plano Pena Justa, elaborado com participação de quase 60 órgãos do Executivo e do Sistema de Justiça, 33 reuniões institucionais e consulta pública que recebeu quase 6 mil contribuições.

O Plano Pena Justa estrutura 51 ações e 306 metas, com arranjo de governança, prazos e monitoramento institucional para implementação nacional, articulando União e entes federados, a serem alcançadas até 2027, organizadas em quatro eixos: controle da entrada no sistema prisional, melhoria das condições de custódia, processos de saída e reintegração social, e políticas para não repetição da crise. Sua implementação é obrigatória para todos os estados, com monitoramento mensal pelo CNJ ao STF.

Nesse contexto, o indulto funciona como instrumento de racionalização do sistema prisional: alivia a superlotação, protege os mais vulneráveis e incentiva a reintegração, sem abrir mão da firmeza necessária contra o crime organizado e ataques à democracia.

O decreto mantém proteções humanitárias importantes: idosos, gestantes de alto risco, pessoas com deficiência grave, portadores de doenças terminais, paraplégicos, tetraplégicos e pessoas com transtorno do espectro autista severo continuam contemplados.

Essas previsões reconhecem que, em um sistema marcado por superlotação, falta de assistência médica e condições degradantes, manter essas pessoas presas pode representar verdadeira sentença de morte.

O decreto também perdoa penas de multa para quem comprova incapacidade de pagamento. Essa medida tem impacto direto na reintegração social, pois reduz barreiras financeiras que perpetuam ciclos de pobreza. A pena de multa não paga transforma-se em dívida que impede certidões negativas, dificulta emprego formal e mantém o egresso em situação de marginalização.

Senhoras e senhores, é preciso dizer com todas as letras: o Decreto 12.790/2025 não é concessão gratuita nem benevolência despropositada. É instrumento de Estado, fruto de construção técnica rigorosa, debate democrático amplo e fiscalização institucional permanente. Representa equilíbrio amadurecido entre humanização e responsabilidade, entre clemência legítima e proteção da sociedade.

A exclusão de líderes de facções não é punitivismo cego, mas reconhecimento de que o Brasil enfrenta organizações criminosas sofisticadas que comandam operações de dentro das celas, que ordenam execuções, que paralisam estados inteiros com ondas de violência. Incluí-las no indulto seria sinalizar fraqueza estatal e desrespeitar as milhares de vítimas do crime organizado.

Por outro lado, a ampliação de benefícios para mulheres, estudantes e famílias vulneráveis reconhece que o sistema prisional brasileiro está em colapso e que é preciso racionalizar seu uso, priorizando a prisão para quem realmente representa perigo à sociedade. Este é o caminho: nem o encarceramento em massa que destrói vidas e perpetua desigualdades, nem a ingenuidade perigosa que ignora a gravidade do crime organizado.

O caminho é o do equilíbrio, da evidência, da participação social e da responsabilidade democrática. O Decreto 12.790/2025, com seus avanços e suas exclusões, representa esse equilíbrio necessário. Não se trata de escolher entre punir e perdoar, entre rigor e humanidade. Trata-se de construir uma política criminal inteligente, que proteja a sociedade sem abrir mão da dignidade humana, que enfrente o crime organizado sem perpetuar injustiças históricas, que reconheça as falhas estruturais do sistema prisional sem ser conivente com a violência.

*Arthur Richardisson é Presidente do Observatório Nacional da Advocacia Criminal da Abracrim Nacional e Conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)

 

Criminalista Arthur Richardisson Criminalista Arthur Richardisson


 


 





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